Romanos 1.17-23
“(18) Porque a ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e injustiça dos homens que substituem a verdade pela injustiça; (19) porque o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhos manifestou. (20) Pois, desde a criação do mundo, os atributos invisíveis de Deus – seu eterno poder e sua natureza divina – têm sido claramente vistos, sendo percebidos através das coisas criadas, de forma que tais homens são indesculpáveis; (21) porque, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, mas seus pensamentos tornaram-se fúteis, e seus corações insensatos se obscureceram. (22) Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos, (23) e trocaram a glória do Deus incorruptível por imagens feitas segundo a semelhança do homem corruptível, bem como de pássaros, quadrúpedes e répteis.”
18. Porque a ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e injustiça dos homens. O
apóstolo apresenta agora um argumento com base numa comparação de
opostos a fim de provar que a justiça só pode ser concedida ou conferida
pela instrumentalidade do evangelho, pois ele demonstra que sem este
todos [os homens] estão condenados. A salvação, pois, será encontrada
unicamente no evangelho. A primeira prova confirmativa que ele adiciona
consiste no fato de que, embora a estrutura do mundo e a mais esplêndida
ordem dos elementos deveriam induzir o homem a glorificar a Deus,
todavia não há nada que o desobrigue de seus deveres. Isto é prova de
que todos os homens são culpados de sacrilégio e de ignóbil e iníqua
ingratidão.
Há quem sugere que esta é a primeira proposição de Paulo, de modo a iniciar seu discurso com o arrependimento;
sinto, porém, que aqui é onde Paulo começa seu tema polêmico, e que o
tema central foi afirmado na cláusula precedente. Seu objetivo é
instruir-nos sobre onde a salvação deve ser buscada. Ele garante que só
podemos obtê-la por meio do evangelho, mas visto que a carne não se
humilhará voluntariamente ao ponto de atribuir o louvor da salvação
exclusivamente à graça divina, o apóstolo mostra que o mundo todo é
culpado de morte eterna. Segue-se deste fato que devemos reaver a vida
por algum outro meio, visto que, por nós mesmos, estamos todos perdidos.
Um exame criterioso de cada palavra nos será de grande valia a fim de
entendermos o significado da passagem.
Alguns intérpretes fazem distinção entre impiedade e injustiça,
sustentando que impiedade aponta para a profanação do culto divino,
enquanto que injustiça aponta para a carência de justiça nos homens.
Entretanto, visto que o apóstolo se refere a esta injustiça em imediata
relação com a negligência da religião genuína, interpretaremos ambas
como tendo o mesmo sentido. Toda impiedade humana deve ser considerada à
luz da figura de linguagem chamada hipálage, significando a
impiedade de todos os homens, ou a impiedade da qual todos os homens se
acham convencidos. Uma coisa é designada através de duas expressões
distintas, a saber: ingratidão em relação a Deus, visto que o injuriamos
de duas formas. ̕Ασέβεια, impiedade, implica na desonra de Deus, enquanto que ἀδικία, injustiça,
significa que o homem, ao transferir para si o que pertence a Deus, tem
injustamente privado a Deus de sua devida honra. O termo ira,
referindo-se a Deus em termos humanos como é comum na Escritura,
significa a vingança de Deus, pois quando ele pune, segundo nosso modo
de pensar, ele aparenta estar irado. O termo, pois, revela não a atitude
emocional de Deus, e, sim, as sensações do pecador que é punido. Paulo,
pois, diz que a ira de Deus é revelada do céu, conquanto a expressão do céu é
tomada por alguns como um adjetivo, como se ele dissesse: a ira do Deus
celestial. Em minha opinião, contudo, é mais enfático dizer: “Para
qualquer parte que o homem olhe, ele não encontrará salvação alguma,
pois a ira de Deus é derramada sobre o mundo inteiro e permeia toda a
extensão do céu.”
A verdade de Deus significa o
genuíno conhecimento de Deus, e substituir a verdade é suprimi-la ou
obscurecê-la; daí serem eles acusados de latrocínio. Em injustiça é um hebraísmo, e significa injustamente [injuste], porém levamos em conta sua perspicuidade.
19. Porque o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles. Paulo
assim designa qual a propriedade ou expediente para adquirirmos
conhecimento acerca de Deus, e indica tudo o que se presta para anunciar
a glória do Senhor, ou – o que é a mesma coisa – tudo quanto deve
induzir-nos ou incitar-nos a glorificar a Deus. Isso subentende que não
podemos compreender plenamente a Deus, em toda sua grandeza, mas que há
certos limites dentro dos quais os homens devem manter-se, embora Deus
acomode à nossa tacanha capacidade [ad modulum nostrum attemperat]
toda declaração que ele faz de si próprio. Portanto, somente os
estultos é que buscam conhecer a essência de Deus. O Espírito, o
Preceptor da sabedoria plenária, não sem razão chama nossa atenção para o
que pode ser conhecido, τό γνωστόν, e o apóstolo logo em seguida
explicará como isso pode ser apreendido. A força da passagem é
intensificada pela preposição in [in ipsis, em vez do simples ipsis]. Conquanto na fraseologia hebraica, a qual o apóstolo freqüentemente usa, a partícula in [em]
é às vezes redundante, tudo indica que ele, nesta instância, pretendia
indicar uma manifestação do caráter de Deus que é por demais forte para
permitir que os homens dela escapem, visto que, indubitavelmente, cada
um de nós a sente esculpida em seu próprio coração. Ao dizer: Deus lhos manifestou,
sua intenção é que o homem foi criado para ser um espectador do mundo
criado, e que ele foi dotado com olhos com o propósito de ser guiado por
Deus mesmo, o Autor do mundo, para a contemplação de tão magnificente
imagem.
20. Pois, desde a criação do mundo, os atributos invisíveis de Deus – seu eterno poder e sua natureza divina – têm sido claramente vistos. Deus,
em si mesmo, é invisível, porém, uma vez que sua majestade resplandece
em todas suas obras e em todas suas criaturas, os homens devem
reconhecê-lo nelas, porquanto elas são uma viva demonstração de seu
Criador. Por esta razão o apóstolo, em sua Epístola aos Hebreus, chama o
mundo de espelho ou representação [specula seu spectacula]
das coisas invisíveis [Hb 11.3]. Ele não apresenta detalhadamente todos
os atributos que podem ser considerados pertencentes a Deus, porém nos
diz como chegar ao conhecimento de seu eterno poder e divindade. Aquele
que é o Autor de todas as coisas deve necessariamente ser sem princípio e
incriado. Ao fazermos tal descoberta sobre Deus, sua divindade se
descortina diante de nós, e esta divindade só existe quando acompanhada
de todos os atributos divinos, visto que todos eles se acham incluídos
nesta divindade.
Tais homens são indesculpáveis. Isso
prova nitidamente o quanto os homens podem lucrar com a demonstração da
existência de Deus, ou, seja: total incapacidade de apresentar qualquer
defesa que os impeça de serem justamente acusados diante do tribunal
divino. Devemos, pois, fazer a seguinte distinção: a manifestação de
Deus, pela qual ele faz sua glória notória entre suas criaturas, é
suficientemente clara até onde sua própria luz se manifesta. Entretanto,
em razão de nossa cegueira, ela se torna inadequada. Porém não somos
tão cegos que possamos alegar ignorância sem estar convictos de
perversidade. Formamos uma concepção da divindade e então concluímos que
estamos sob a necessidade de cultuar tal Ser, seja qual for seu
caráter. Nosso juízo, contudo, fracassa aqui antes de descobrirmos a
natureza ou caráter de Deus. Daí o apóstolo, em Hebreus 11.3, atribui à
fé a luz por meio da qual uma pessoa pode obter real conhecimento da
obra da criação. Ele tem boas razões para agir assim, pois somos, em
virtude de nossa cegueira, impedidos de alcançar nosso alvo. E todavia
vemos suficientemente bem para ficarmos totalmente sem justificativa.
Ambas estas verdades são bem demonstradas pelo apóstolo em Atos
14.16-17, quando diz que o Senhor, em tempos passados, deixou as nações
em sua ignorância, entretanto não as deixou sem testemunho (ἀμάρτυροι),
visto que lhes deu do céu as chuvas e as estações frutíferas. Esse
conhecimento de Deus, portanto, só serve para impedir que os homens se
justifiquem, o qual difere grandemente do conhecimento que traz a
salvação. Este último [conhecimento] é mencionado por Cristo, e Jeremias
nos ensina a nos gloriarmos nele [Jo 17.3; Jr 9.24].
21. Tendo conhecimento de Deus. Ele
claramente afirma, aqui, que Deus pôs o conhecimento de si mesmo nas
mentes de todos os homens. Em outras palavras, Deus tem assim
demonstrado sua existência por meio de suas obras a fim de levar os
homens a verem o que não buscam conhecer de sua livre vontade, ou, seja,
que existe Deus. O mundo não existe por meios fortuitos nem procedeu de
si mesmo. Mas é preciso notar sempre qual o grau de conhecimento em que
permaneceram, como veremos a seguir.
Não o glorificaram como Deus. Nenhuma
concepção de Deus se pode formular sem que se inclua eternidade, poder,
sabedoria, bondade, verdade, justiça e misericórdia. Sua eternidade se
evidencia mediante o fato de que ele mantém todas as coisas em suas
mãos e faz com que todas elas estejam em harmonia com ele. Sua sabedoria é percebida no fato de que ele dispôs todas as coisas em perfeita ordem. Sua bondade consiste
em que não há nenhuma outra causa para que ele criasse todas as coisas,
nem existe alguma outra razão que o induza a preservá-las, senão sua
bondade. Sua justiça se evidencia no modo como ele governa o mundo, visto que pune os culpados e defende os inocentes. Sua misericórdia consiste em que ele suporta a perversidade dos homens com inusitada paciência. E sua verdade consiste
no fato de que ele é imutável. Aqueles, pois, que pretendem formular
alguma concepção de Deus, devem tributar-lhe o devido louvor por sua
eternidade, sabedoria, bondade, justiça, misericórdia e verdade.
Visto que os homens têm deixado de
reconhecer em Deus tais atributos, ao contrário o têm retratado
imaginariamente como se fosse um fantasma sem substância, tem-se
afirmado, com justiça, que eles o têm impiamente despido de sua glória.
Não é sem razão que Paulo adicione que nem lhe deram graças,
pois não existe ninguém que não esteja endividado para com a infinita
munificência divina, e é somente por esta razão que ele nos põe na
condição de eternos inadimplentes diante de sua condescendência em
revelar-se a nós. Mas seus pensamentos tornaram-se fúteis, e seus corações insensatos se obscureceram,
ou, seja: renunciaram a verdade de Deus e se volveram para a vaidade de
seus próprios raciocínios, os quais são completamente indistinguíveis e
sem permanência. Seu coração insensível, sendo assim entenebrecido, não pode entender nada corretamente, senão que se acha precipitado em erro e falsidade. Esta é a injustiça [da
raça humana], ou, seja: que a semente do genuíno conhecimento foi
imediatamente sufocada por sua impiedade antes que pudesse medrar e
amadurecer.
22. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos. Comumente
se infere desta passagem que o apóstolo está fazendo alusão aos
filósofos que adotavam exclusivamente para si a fama de sábios. A força
de seu argumento é mantida para provar que, quando a superioridade dos
grandes é reduzida a nada, o povo comum fica destituído de base para
supor que os homens possuem algo digno de louvor. Os intérpretes que
defendem este conceito não me convencem de que foram influenciados por
um raciocínio suficientemente conclusivo, pois não era peculiar aos
filósofos imaginarem que possuíam sabedoria no conhecimento de Deus, mas
que tal sabedoria era igualmente comum a todas as nações e classes de
homens. Todos os homens têm procurado formar alguma concepção da
Majestade de Deus, e imaginá-lo um Deus tal qual sua razão pudesse
concebê-lo. Tal pretensão em referência a Deus, afirmo eu, não se
aprende nas escolas filosóficas, senão que é algo inato e nos acompanha,
por assim dizer, desde o ventre materno. É evidente que este mal tem
florescido em todos os tempos, de modo a permitirem os homens a si
mesmos total liberdade de engendrar práticas supersticiosas. Portanto, a
arrogância que aqui se condena consiste em que, quando os homens deviam
humildemente dar glória a Deus, procuraram ser sábios a seus próprios
olhos e reduziram Deus ao nível de sua própria condição miserável. Paulo
mantém o seguinte princípio: se alguém se aliena do culto divino, a
culpa é toda sua, como se quisesse dizer: “Visto que se exaltaram
soberbamente, se converteram em loucos pela justiça vingadora de Deus.”
Há também uma razão óbvia que milita contra a interpretação por mim
rejeitada. O erro de formar uma imagem de Deus [de affingenda Deo imagine] não teve sua origem nos filósofos, mas foi recebido de outras fontes, recebendo também daí sua própria aprovação.
23. E trocaram a glória do Deus incorruptível. Uma
vez tendo imaginado Deus segundo o discernimento de seus sentidos
carnais, foi-lhes impossível reconhecer o Deus verdadeiro, porém
inventaram um deus novo e fictício, ou, melhor, um fantasma mitológico. O
que Paulo tem em mente é que trocaram a glória de Deus. Da
mesma forma como alguém poderia substituir um filho por outro, eles se
afastaram do verdadeiro Deus. Nem podem ser escusados sob o pretexto de
que crêem, não obstante, que Deus habita o céu, e que não consideram a
madeira como sendo Deus, e, sim, como sendo sua imagem ou representação
[pro simulacro], pois formar tão grosseira idéia de sua
Majestade, ao ponto de fazer uma imagem dele, se constitui num terrível
insulto dirigido a Deus. Nenhum deles pode isentar-se da blasfêmia de
tal pretensão, quer sejam sacerdotes, governantes ou filósofos. Até
mesmo Platão, o mais primoroso entre eles, em sabedoria, procurou
delinear alguma forma de Deus [formam in Deo].
A total loucura para a qual voltamos a
atenção aqui consiste em que todos os homens têm pretendido fazer para
si próprios uma figura de Deus. Esta é uma sólida prova de que suas
idéias acerca de Deus são grosseiras e irracionais. Em primeiro plano,
eles têm maculado a Majestade divina ao concebê-la de conformidade com a
semelhança de homem corruptível (prefiro esta tradução em vez de homem mortal,
adotada por Erasmo), visto que Paulo confrontou não só a mortalidade
humana com a imortalidade divina, mas também a glória divina
incorruptível com a própria condição deplorável do homem. Além do mais,
não se sentindo satisfeitos com tão profunda ofensa, eles ainda desceram
às mais vis bestialidades, tornando ainda mais concreta sua estupidez. O
leitor poderá ver uma descrição dessas práticas abomináveis em
Lactâncio, Eusébio e Agostinho, este último em sua Cidade de Deus.
Sola Scriptura!
Sola Scriptura!